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Uma geração comprometida pelo trauma.

  • Foto do escritor: Sílvia Nunes
    Sílvia Nunes
  • 21 de jan.
  • 3 min de leitura

Várias vezes ouvimos dizer que as pessoas deslocadas não trazem nada com elas a não ser a “roupa que tem vestida”. Esta afirmação não é totalmente verdadeira. Se o nosso olhar se focar ao nível da Saúde Mental, estas pessoas carregam com elas “malas” pesadíssimas de vivencias potencialmente traumáticas, de histórias sentidas na primeira pessoa, histórias que não deviam ser imaginadas quanto mais vividas.


Digo vivências potencialmente traumáticas, porque nem todas as pessoas são afetadas da mesma maneira. Muitas pessoas conseguem experienciar os eventos difíceis de maneira saudável e produtiva. No entanto, para tantas outras a exposição aos eventos traumáticos tem efeitos mais profundos, duradouros no seu dia a dia.


Independentemente de circunstâncias protetoras ou do risco do sofrimento psicológico, existem eventos críticos que pelas suas características, são mais complexos do que outros. Os ataques armados estão dentro desta categoria.


Estamos perante um evento de enorme violência a vários níveis: 


  • A segurança das pessoas é colocada em causa;

  • Existência de perdas tanto humanas como materiais;

  • Pessoas desaparecidas/ raptadas em que as famílias não conseguem elaborar o luto;

  • Crianças separadas das famílias;

  • Crianças sem acesso à escola;

  • Apesar de estarem no mesmo país, estão em comunidades que não conhecem, com uma língua diferente da delas e com uma cultura e hábitos diferentes;

  • Perda da rede de apoio social.


Para agravar ainda mais esta situação, os ataques armados têm um início, mas não têm um fim. Este aspeto, ao nível da saúde mental tem um impacto muito grande, porque retira a esperança de tempos melhores. A esperança é fundamental para a diminuição do sofrimento psicológico.


Quando me sentava - na terra vermelha - com as pessoas para ouvir os seus testemunhos, diziam que estavam constantemente em alerta, vigilantes e que ainda não se sentiam completamente seguras. Conseguiam controlar os pensamentos mais intrusivos, mas quando iam dormir não controlavam os pesadelos que ainda os prendiam ao passado. Ouvi algumas “mamas” (termo utilizado em Moçambique para mãe) a dizer que os filhos acordavam à noite a chorar e que quando estavam a brincar e, porque ouviam algum barulho que associavam aos ataques, desatavam a correr para junto dos adultos.


Muitas pessoas relatavam que viviam muito ansiosas/nervosas e que tinham manifestações físicas: o corpo ficava todo tenso a doer, com queixas psicossomáticas dores de estômago, dores de cabeça. Tive um pai que me dizia que não percebia porque é que o seu filho de 6 anos tinha deixado de falar com os adultos e que no presente momento só falava com os meninos da mesma idade. Muitas vezes me perguntei: Como é que experiências horríveis fazem com que as pessoas fiquem irremediavelmente presas ao passado?


Metáfora do Trauma: A Estátua de Sal


Esta metáfora vem da Bíblia e conta a seguinte história: 


Deus ia destruir uma cidade (Sodoma) e avisou várias famílias aconselhando a fugir. Nessa fuga, nunca deveriam de olhar para trás. Quando algumas famílias estavam em fuga, começou a cair enxofre dos céus e a cidade foi incendiada, porém na fuga uma pessoa olhou para trás e foi transformada em estátua de sal. Esta metáfora retrata a vivência do trauma e de como as pessoas as comunidades ficam presas ao passado, congeladas ao evento traumático não conseguindo viver o presente nem olhar para o futuro. Muitas pessoas não são capazes de transformar o seu passado numa história que tenha acontecido há muito, muito tempo. Contam e vivem como se estivesse no aqui e agora. O trauma não é apenas um acontecimento que aconteceu no passado, deixa uma marca no cérebro e no corpo. As pessoas com vivência de trauma, irão sobrepor o seu trauma a tudo o que os rodeia e têm dificuldades em decifrar o que se passa à sua volta. Se o trauma não for tratado, faz com que as pessoas e as comunidades carreguem toda a vida estátuas de sal dentro delas, ficando congeladas emocionalmente, não permitindo o seu crescimento.

 
 
 

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